Abismo

Todos los miércoles tengo una cita

Con el viento

Él viene del sur

Y yo vengo del norte

Nos quedamos en la playa

Nos calentamos en el mar

Es vida, es amor, mi gran pasión

Veo el abismo

Pero yo, a mi me gusta el riesgo

Lo sabes, no?

Hermano, te he compreendido

Ahora, se me lo permites

Voy a ser un poco de ti hasta siempre

Fue en aquél ciudad

El juego y la pasión me han dominado

Hasta ahora me pregunto

Pero lo sé

El tiempo es mi mejor amigo

Hermano, perdóname el retraso

Tenemos tiempo y tu lo sabes mejor que yo

Me he dado cuenta

El abismo, el peligro

Lo riesgo

Es cómo la llama acesa

Me tragam el interés, la pasión, la vida

Tu eres un riesgo y sólo lo quiero, por ora

Lo sabes muy bien

Sólo mi hermano y yo lo sabemos

Es el motivo de no quitarmos el amor de nuestras vidas

El amor es siempre un riesgo

He decidido poner un fin a la ilusión

Por la mañana pienso que tu no piensas en mi

Luego llegó un mensaje

Sí, no eres indiferente 

Tu piensas en mi

El amor es siempre un riesgo

Pero no toda vez es amor, el amor

Por lo menos, puede que sea deseo

Y nada más

Te traigo muy cerca del pecho

Voy a poner la camisa

El corazón despierta 

En cada cerveza

En cada esquina

En cada palabra

Y hasta la memória

Yo lo sé

No hables mal del tiempo

Yo lo defendo 

Es más un riesgo

El amor es siempre un riesgo

Tengo ganas de mirar abajo

Al abismo

Venga

El amor es siempre un riesgo

No me lo arrepientiré

Cartas na manga

Cada escolha revela um pensamento, por vezes uma intenção. O vestido é sempre escolhido baseado em detalhes e critérios que conjugam os compromissos, a viabilidade de sucesso do dia, o destino que assombra, as possibilidades de felicidade (mesmo que egoístas), as lutas e batalhas a serem encampadas, os inimigos à espreita e até mesmo o desejo – seja ele de quantas tonalidades for.

Escolher o vestido é desafiar-se a traduzir numa linguagem que pode passar despercebida toda uma personalidade e uma vida, é ter apenas alguns tantos de algum pano a enviar mensagens e declarar guerra – ou paz. Por vezes, o mesmo vestido pode dizer algo diferente, conforme os acessórios, o dia, a lua, a estação e até mesmo, jamais ele não dirá nada.

É como encampar um diálogo com o mundo, sem palavras ditas, contudo que calam mais do que gritos. Gritos. De onde quer que venham os gritos. Há uma eu que quase ninguém conhece e que graça teria a vida se fosse tão fácil assim conhecê-la. E desse quase ninguém há poucos sobreviventes. Para lograr conhecer alguém há que se ouvir os diálogos sem palavras, há que se aproximar de quem ela é quando não há ninguém a testemunhar seus atos e pensamentos. Deus foi tão grande quando não permitiu aos humanos que lêssemos os pensamentos uns dos outros! 

Até mesmo quando a escolha não é um vestido ela emite sinais sensíveis ao tato e ao olhar mais apurado. Porém, não é possível tocá-la. As traduções simultâneas são da pior qualidade, sempre com impressões deturpadas pelos olhos que a vêem. Consolida-se o fracasso do diálogo humano tão ressecado ao hábito do bê a bá.

Como o Destino não se pronuncia quando dará o ar da graça, só me cabe tecer inúmeras estratégias em cada passo, em cada olhar, em todas as escolhas e, por vezes, ter vestidos como uma boa jogadora têm cartas na manga.

A banalidade do mal e a vida feliz

Esses dias eu comentava o filme The Zone of Interest e acabamos falando sobre a “banalidade do mal” (eu vi que teve muita discussão sobre isso, se ele seria um representante do conceito ou não e tal, mas não era o meu ponto).

A banalidade do mal, de Hannah Arendt, é um dos temas mais fascinantes que conheci na vida. Não sei bem o motivo, mas ter lido Eichmann em Jerusalém me marcou profundamente (assim como tantas outras histórias da Segunda Guerra, já devo ter comentado várias delas como Areia Pesada e Primo Levi). Além do livro, que espero poder reler na maturidade visto que li quando tinha vinte anos, os filmes sobre Hannah Arendt que passam pelo tema e também assistir aos vídeos do depoimento real de Eichmann são impressionantes. Sabemos como a adaptação em livros, filmes, séries mantém acesa a nossa chama por determinados assuntos – mesmo adaptação de fatos reais.

Quer dizer, acho que eu sei bem o motivo desse meu profundo interesse pelo tema. Desde muito cedo eu tive contato com a maldade humana no seu pior tipo e tentar compreendê-la, desvendá-la ou somente observar e analisar é algo que trago comigo a vida inteira. Li um bom tanto de psicologia para acompanhar o que se estuda sobre isso e sou adicta de literatura de crimes, comecei com o bom e velho Conan Doyle, segui naturalmente para Agatha Christie e depois foi algo mais abrangente. Também fui fissurada (era, na época, o único programa que me prendia na TV) no Linha Direta, ano passado ouvi todos os capítulos do novo Linha Direta no podcast. Gosto muito de ler e ouvir sobre criminalística, ciência forense, investigações e tal.

A maldade humana é, talvez, o tema central da vida que eu mais acompanho, visto que ser uma pessoa que pratica crimes e maldade contra o próximo é algo que não tem explicação. Quando se é vítima da maldade humana, aquela maldade pura e simples ou mesmo com interesses, a gente aprende a conviver com a realidade de um jeito diferente. Eichmann só fazia um trabalho bem feito, assim como tantos outros funcionários e até servidores públicos naquele período e nos dias de hoje.

Praticar a maldade deve proporcionar algum tipo de prazer, como dizem especialistas, por isso tantas pessoas são levadas a gozar com a dor do outro. A maldade também provê interesses e lucros, sejam econômicos, pessoais, familiares, etc. Acusar falsamente que alguém assassinou outra pessoa, para poder ficar com seus direitos da herança, por exemplo, é um lucro pessoal (o acusador quer o mal do inocente) e também econômico (terá mais dinheiro da herança para si). Quando você consegue ter uma certa frieza e experiência, fica mais fácil identificar esses propulsores da maldade alheia.

Quando um ex-aluno frustrado que defendia um ser abjeto que jamais foi filósofo e se formou assistindo aos pseudo-documentários daquela produtora que diz reescrever a História, quando esse aluno nunca teve coragem nem argumentos para te desmerecer enquanto professora, mas utiliza-se de cargo público para tentar te prejudicar profissionalmente, porque você produz e tem público para o teu discurso, enquanto ele não consegue muito na vida, você entende a maldade como um escape para a frustração da realização pessoal.

São inúmeros os exemplos. Tem muita gente, como no filme, que só quer uma casa com quintal bonito, um salário todo mês nas mãos para pagar as contas da família. E a quantidade de gente que usa qualquer meio para alcançar isso é incalculável. Tem gente que só se irrita com uma criança que nunca quis colocar no mundo. Tem gente que faz qualquer coisa para ser aceita num grupo, ou pela pessoa que ama. Os objetivos das pessoas as levam a caminhos duvidosos, perigosos e criminosos – mas hoje não é dia de falar de Maquiavel.

Eu entendo como um mero servidor público quer me prejudicar porque eu fiz algo que incomodou-o e, por isso, vestido da sua autoridade enquanto ocupante de um cargo público, ele fará de tudo, inclusive abusando de irregularidades e cometendo crimes, para me calar. Eu conheço a maldade humana, eu sei que isso é perfeitamente possível.

Mas, também, penso naqueles que não querem fazer isso, que são boas pessoas, que estão somente defendendo o salário que paga as contas da sua família. Seriam todos eles Eichmanns? Cada um que se abstém de denunciar as irregularidades dos seus colegas, que assina documentos que são legítima prova de perseguição política, também são cúmplices, coautores dos crimes. 

Felizmente, através da reflexão e do entendimento que tivemos ao longo da história da humanidade, não cogitamos mais ser a banalidade do mal um argumento plausível em defesa dessas pessoas. Nós não assistimos à The Zone of Interest e conseguimos justificar aquelas pessoas (mesmo com a atuação brilhante de Sandra Hüller) porque, afinal, o jovem casal sonha ter sua casa e um trabalho desde quando eram adolescentes. Não podemos passar por cima de qualquer um e de qualquer coisa para termos o que queremos na vida, é uma regra simples e básica. Talvez, como diria um professor que tive, por isso mesmo tão difícil de entender.

Sobre o filme, não sei de qual lado fico entre os que defendem que ele é uma representação do conceito e os que dizem que não é. Prefiro me ater ao filme no seu ponto de vista tão bem escolhido, na narrativa potente (de imagens e sons), nas atuações brilhantes. Prefiro pensar como é bom fazer cinema que apaixona, que desencadeia debates, que nos leva a ser persona non grata, pelos filmes que produzimos e pelos discursos que proferimos, de certos grupos ideológicos (Glazer não perdeu a oportunidade com o seu discurso de agradecimento, nós não fazemos somente arte nas telas, nós somos seres políticos – já dizia Arendt e a Filosofia desde Aristóteles). Que façam inúmeros berreiros nos palanques e assinem cartas o quanto quiserem, a maldade humana raramente surpreende.

A “solução final”, inclusive, foi buscada através da expertise do Eichmann e de outros porque levar os soldados alemães a cometerem assassinatos frios era caro e estava causando danos mentais neles. Quando os soldados alemães tiveram que assassinar seus amigos de escola, seus vizinhos e professores, com uma bala na nuca de cada um, o problema estava instaurado. Era caro e as tropas ficavam abaladas. Assim, entendemos que as decisões “de gabinete” solucionaram o problema que era praticar um genocídio. Os instrumentos de um crime também pagarão o preço pelos seus atos, seja com um processo e condenação, seja a própria consciência – e há quem acredite que orar o resto da vida pedindo perdão vai resolver. 

Quem sabe Deus criou a maldade humana justamente como o maior desafio para a vida feliz.

A Arte permanecerá – os políticos não

O artista sempre foi o ponto de inflexão da sociedade. Desde a primeira pessoa que teve necessidade de expressar-se, sem limitar-se pela mera comunicação, através das linguagens e em busca das sensações, o artista é um nó no meio dos outros. Então, desde sempre o artista é temido.

Muito se fala que tememos o desconhecido, pois bem, no caso dos artistas eles temem o que conhecem muito bem – nós levamos reflexão, nós debatemos, nós fazemos pensar, nós expomos as fissões que constroem as nossas relações e desigualdades. Não é por menos que um dia um filme é atacado, no outro dia uma exposição, semanas depois o cantor que levantou uma bandeira durante o show. 

Os artistas só querem dizer, o tempo todo, que os seres humanos não somos iguais. Enquanto as ideologias totalitárias querem fazer todos rezarem na mesma palavra sagrada. 

Ao longo dos séculos os artistas foram e são financiados pelos grandes mecenas, viveram na miséria e só são reconhecidos posteriormente, adequaram-se à indústria, foram financiados pelas políticas públicas estatais ou pelo capital. Em muitos desses momentos as “leis” tentaram calar os artistas, colocaram em marcha o “quem paga, manda”. Mesmo assim os artistas viveram e buscaram sua liberdade, a altos preços.

Porque a questão é simples: o artista não deve servir e assegurar os discursos do Estado e do capital – senão, não será Arte. Quem tenta impor seus valores religiosos como régua moral para o fazer artístico, ou seu posicionamento ideológico como critério para a produção cultural, cairá no abismo da chacota, da ilegalidade e do totalitarismo. A chacota rende piadas nas redes sociais, a ilegalidade e o totalitarismo rendem denúncias e processos judiciais.

Ao artista não cabe servir ao discurso ideológico do estado. Já vimos isso inúmeras vezes ao redor do mundo, ao longo dos séculos, inclusive na União Soviética, quando financiados pelo Estado os artistas eram tolhidos na sua liberdade de expressão. Tal como temos visto tentarem (apenas tentarem, talvez inspirados pelos soviéticos) certos políticos eleitos em Santa Catarina, por exemplo.

A máquina pública fará de tudo para impor medo aos artistas que são apenas artistas – essa raça que cria, que faz do mundo e da realidade uma fantasia e conta histórias e traz beleza ao mundo. Os donos do poder têm medo dos artistas. Quando do golpe e da ditadura militar no Brasil, por exemplo, além da questão ideológica, as perseguições focaram muito nos artistas – eles queriam calar todos os nós que existiam em meio à sociedade. 

E quem diria que eles temem filmes… quem diria que filmes seriam perseguidos, em 2024, que tentariam impedir um festival de cinema de acontecer, quem diria que tentariam me impedir de fazer filmes! Quem diria que o medo deles é que as pessoas assistam aos nossos filmes e se deparem com as inflexões que não estão rezando na palavra do livro sagrado deles.

Sim, porque o meu livro sagrado não é o mesmo que o deles. 

Quem trabalha com arte, quem produz através de políticas públicas – direito garantido pela Constituição – não trabalha confortavelmente para o Estado. O artista desafia o Estado ao produzir arte para muita gente sem pedir o amém da escritura sagrada desse ou daquele indivíduo que por conta de alguns votos já se considera um protótipo de ditador.

Observo quem trabalha em secretarias e fundações de cultura infringindo as leis para tentar – jamais conseguirão – impor aos artistas o jugo da perseguição política. A Lei (aqui da Terra mesmo) vai bater à porta de vocês. A sociedade que, por vezes, não reconhece o valor que tem um artista já não tolera mais o abuso de poder, a ilegalidade, a corrupção, a imoralidade e demais ações que não combinam com a nossa Democracia.

E já que é Páscoa, venho lembrá-los que ser cristão é muito, mas muito, difícil. Tem que oferecer a outra face, tem que perdoar, não pode cobiçar (nem a mulher nem nada do outro), tem que honrar pai e mãe, tem que ser humilde, tem que amar a Deus sobre todas as coisas. Pra esses que vêm a público defender sua ideologia política e seus “valores cristãos”, recomendaria voltar ao texto sagrado. Recomendo desligar o Instagram e ir para o quarto, lá na solidão e no silêncio é que o teu Deus te ouve – está escrito no texto sagrado, mas talvez vocês tenham pulado essa parte. Quando você for um exemplo de humildade, de alma caridosa e gentil, quando da sua boca não saírem línguas de fogo contra os teus irmãos, quando não mais julgares os demais, quando o amor for a única coisa que você tiver a oferecer ao mundo, aí você estará no nível mínimo pra defender a sua religião nas redes sociais e nas tribunas. 

Como sempre disse minha mãe, não adianta no domingo ir lá bater no peito e cantar os louvores ao Senhor, não. Ser cristão é muito, mas muito, difícil. Antes de pregar e querer impor suas crenças, garanta que suas ações e suas palavras são exemplos evidentes de cristandade. Não dá pra defender a tua religião cristã e querer fazer mal, deliberadamente, aos outros (artistas, por exemplo). Limpem a boca antes de citar qualquer Deus para atacar, difamar, expor e perseguir pela simples maldade – em troca de votos, apoio de partido ou 15 minutos de fama em redes sociais. 

Os artistas não são burros. Sabemos qual o jogo que está sendo jogado e os motivos de sermos envolvidos na lama que brota das almas mais sebosas da política local. Os secretários de cultura passarão, os prefeitos, vereadores, deputados e governadores passarão, a Arte permanecerá.

Sempre uma de nós

A Fernanda chegou no início da madrugada em casa, numa kitnet onde morava sozinha. Futura Engenheira, jovem, tinha ido a um evento naquela noite. Em pouco tempo, seus gritos foram ouvidos. Um vizinho entrou, violentou-a, roubou sua TV.

Uma jovem caminhava pela Beira-rio, um homem agarrou-a, em plena luz do dia, e assediou-a (ou violentou-a, como deveria prever a lei, mas, são homens que fazem as leis).

Nunca vou esquecer daquela que foi encontrada enterrada numa praia da região, o marido era policial.

Todos os dias, sem falta. Uma de nós, sempre.

Tento não ficar obcecada ao acompanhar esses casos, porém não os evito. Não há como evitá-los – a não ser que você entre num perfil de rede social de alguma grande empresa de notícias de SC e viva aquela realidade onde não há sequer menção aos casos de violência contra a mulher.

Todo dia, muitas de nós, a cada minuto. A cada segundo.

Filmes sobre violência contra mulher, feitos por agressores de mulheres. Exibições de filmes sobre violência contra mulher, exibidos por agressores de mulheres. Agressores de mulheres em sala de aula, como professores. Agressores de mulheres nas câmaras de vereadores, como representantes do povo. Agressores de mulheres nas polícias, como defensores da lei. 

Agressores de mulheres, por onde quer que eu olhe e onde quer que eu vá.

Todos os dias, uma de nós.

Viver concentrada em não dar chance, em não dar bola, em não dar a entender o que nem foi sequer pensado. Viver sob a tensão de um botão do pânico. Não há agradecimento do tamanho da dor da Maria da Penha, ela, por nós – por quantas mais de nós?

Não acaba. Não deixa de existir por um único dia.

Ela estava na Avenida Atlântica, de Balneário Camboriú, uma das ruas mais conhecidas de Santa Catarina. Ele desferiu um tiro à queima roupa nela e depois tentou tirar a própria vida.

Minha vizinha, som de socos, gritos, liguei pra polícia. Eu devia ter ido ajudar?

Estatísticas, números, epidemia. Nove estupros por dia. Quase 90 mil casos de denúncias, 10 casos de violência doméstica por hora. Por. Hora.

Na praia, ela caminhava sozinha. Ele surgiu do nada, assediou-a, agrediu, violentou. A cidade que é uma ilha começa a preocupar-se com as inúmeras praias, lugar onde também não temos paz nem segurança.

Foi morta e teve seus órgãos arrancados, pois denunciou o marido. Agrediu a vizinha, porque discordou de qualquer coisa. Duas jovens na trilha do Morro do Morcego, paisagens lindas, ambas estupradas. 

Sempre uma de nós.

Aquela menina de doze anos na região sul da cidade.

Todas as horas, uma de nós.

Não parar de bater as pernas, para continuar viva. Todo dia.

Com quantos agressores, estupradores, assediadores, condenados ou não, topamos em um dia? Todos os dias?

Sempre uma de nós.

Ontem fui eu. Hoje eu escapei. Amanhã talvez seja eu novamente. Porque não foi nem nunca será minha culpa. A culpa não é de nenhuma de nós. Mas, sempre uma de nós.

Viva o Cinema!

Ontem, na Argentina, o presidente recém empossado atacou as políticas públicas para o cinema nacional, num arroubo de raiva e tentativa de frear um dos melhores cinemas do mundo – em vários sentidos, inclusive no financiamento público.

Hoje, dia 28 de dezembro, é o marco da primeira exibição dos irmãos Lumière, em Paris, e a data que consideramos o surgimento do Cinema. Cinema, assim mesmo, com letra maiúscula, porque há 128 anos ele é um senhor sucesso de público – até com seus inimigos. Sim, há inúmeros inimigos do Cinema.

Os inimigos surgem pelo único motivo do sucesso, se ele tivesse fracassado na vida, ninguém se incomodaria com ele. Porém, o Cinema ainda apaixona e enfeitiça, nos prende por horas, que longa-metragem nenhum é uma série, nos estala o cérebro em minutagens mais curtas. E carrega atrás de si os fofoqueiros de plantão, pessoas mal-resolvidas que não gostam de ver o sucesso alheio.

Termino o ano feliz da vida por ter feito talvez o filme de maior sucesso nacional (e mais visto? até o momento, quem sabe) da minha cidade. Gritos do Sul rompeu algumas (não poucas) barreiras e só posso agradecer aos detratores, invejosos e infelizes de plantão: eles comprovaram que o curta-metragem foi muito bem sucedido no que se propôs. Aliás, reitero que o sucesso é inclusive a demonstração dos bons resultados que podemos obter no investimento em políticas públicas para o audiovisual. E por saberem muito bem disso é que os políticos da extrema-direita e da direita de cima do muro atacam, por preferência, o Cinema. Hoje, nessa data tão importante, quando o mundo nos deu o Cinema e depois disso nunca mais foi o mesmo, precisamos dizer com todas as letras: eles atacam o Cinema porque sabem o poder dele.

Ninguém teme quem é fraco. Não é mesmo?

Curioso perceber como quem atacou o Gritos do Sul e a mim, roteirista e diretora, é quem se diz paladino da Liberdade. Precisam voltar pro dicionário. Quem ataca um filme jamais pode dizer de si que defende a liberdade – sem espaço aqui para embromação, liberdade ou é a favor, ou contra, encerra-se a questão. Nada mais livre do que produzir filmes corajosos, e que sobrevivem e sobreviverão a todos esses que um dia são alguém, amanhã ninguém sabe que fim deu.

São essas mesmas pessoas que inventam mentiras e correm para as redes sociais atacar os outros que devem ser responsabilizadas pelos seus atos – quantos mais precisarão tirar a própria vida para que nossos legisladores entendam? E o Cinema já antecipou isso, lembro de ter assistido a um filme, um bom tempo atrás, sobre as consequências na vida de uma menina, após ser atacada por mentiras em redes sociais.

Eu poderia ter tirado a minha vida, em algum dos inúmeros dias de angústia que passei ao ser atacada. Não o fiz. Nem todos conseguem. Passou da hora de discutirmos isso. Minha tranquilidade, na alma e na consciência, é saber que fiz um filme que causou tantas reações e que vai reverberar ainda um bom tempo. Mas, não se enganem, o medo não terá vez. Continuam e continuarão tentando calar o Cinema – jamais conseguirão.

Até mesmo quando o Cinema foi usado pelos covardes, quando usam o Cinema como propaganda, ele sobrevive forte para nos contar quais os erros que não podemos cometer. Precisa muito mais do que um decreto qualquer para silenciar o Cinema de um país. Precisa muito mais do que a dor de cotovelo de uns joinvilenses para calar o meu Cinema. Precisa muito mais que streamings capitalistas para fazer do Cinema uma arte desinteressante.

Recebi hoje uma mensagem que dizia que eu mereço (coisas boas) porque luto contra o sistema. Tendo a concordar. Que venham mais pessoas para a luta.

Assim, provamos na prática o quanto vocês precisam mesmo temer o Cinema.

Je dire au revoir !

Je dire au revoir !

C’est le dernier moment

après la bataille contre le fascisme

et la injustice

avant tous les luttes du pouvoir

Je dire au revoir !

Comment a dit l’homme saint :

les pieds aux sol

les mains aux travail

les yeux au ciel

Je te dire au revoir !

J’oublierai

les baisers que je ne t’ai jamais donnés

Maintenant, j’ai seulement l’avenir

Je dire au revoir !

aux ennemis au cœur amer

qui se cachent

je ne suis pas seul non plus

Joie , joie ! Joyeux Noël !

Je dire au revoir !

La vie c’est le qui ont trouve au cœur

L’espoir et la justice se retrouve sur la joie !

Je dire, je crie, je susurre « au revoir »!

Fazer cinema é um ato de coragem

Fazer cinema é um ato de coragem. De fato, para produzir cinema, ainda mais no Brasil, é preciso coragem. Em 2023 eu ouvi várias vezes sobre como fui corajosa, ao relatar e enfrentar os ataques que sofri. Ao acompanhar o Congresso Brasileiro de Cinema, pela internet, ouvi alguém (não me recordo quem) dizer que é preciso coragem para fazer cinema no Brasil. E esta é minha última reflexão do ano.

Não é só preciso coragem no momento de decidir pela profissão de trabalhar no audiovisual. É preciso coragem em cada momento, em todas as demais etapas que se seguirão. Porém, ressalto que é preciso coragem para fazer cinema com o coração. O cinema brasileiro independente não tem final feliz – isso é lá para Hollywood e sua indústria. 

Quando vejo esses projetos e filmes com tanto final feliz, ignorando deliberadamente que somos um país racista, misógino, LGBTfóbico, machista, elitista, eu percebo o quanto de coragem faltou aos seus realizadores. Encher as nossas telas de finais felizes e adocicar a realidade é um golpe nas nossas vidas. Enquanto o cinema produzido por quem quer alavancar sua própria carreira, por quem (muitas vezes) só quer acesso às verbas, por quem quer fazer um filme para “ganhar prêmio em festival” for dominante, a coragem passou longe. Ainda mais de pessoas e sobre histórias com personagens que, na vida real, são as grandes vítimas de um sistema que oprime, violenta e mata. Para ser fiel aos sentimentos e às vítimas, não existe a possibilidade de final feliz.

Produzir o Gritos do Sul foi, sim, um ato de coragem. Denunciar tudo o que aconteceu (e ainda acontece) é um ato de coragem. Porque eu sei que não fui nem serei a única a passar por essa perseguição. Toda a perseguição política e misógina deve ser denunciada para que os demais saibam se defender também.

Atualmente, é preciso muita coragem para trabalhar com cultura, para não ser aquele ou aquela que produz brilho e purpurina, que respalda as narrativas dominantes, que põe sorriso na cara de personagem que está estraçalhado por dentro. Porque temos uma situação na qual o acesso às políticas públicas passa por tantos obstáculos que o valor artístico do projeto importa quase nada diante das mil etapas burocráticas e sociais que ele precisa cumprir. Você é trabalhador da cultura, vai produzir um filme, você não pode ser co-responsabilizado pela falta de acesso aos bens culturais, culpa de décadas de descaso do poder público. Os projetos culturais tornam-se peças legítimas de ficção, em outro sentido, pois disseminam ilusões – como dizem, o papel aceita tudo. Mas, o objetivo é conquistar a verba – não importa quantas mentiras sejam ditas nas inscrições.

Sabemos que em outubro do ano passado uma batalha foi conquistada, e isso trouxe o início da reconstrução. Porém, nada está ganho. Não só a nível federal, mas estadual e municipal, em Santa Catarina principalmente, a batalha é diária. Como eu disse em audiência pública na Câmara de Vereadores esse ano, não há como evitar: Joinville e Santa Catarina pertencem ao Brasil e devem respeitar o que se faz e legisla a nível federal. Prefeitos, vereadores, deputados e governadores podem mirar a Cultura como inimiga: seus gritos não podem ser ouvidos nem perpetrados em ações que vão de encontro ao que está instituído nacionalmente.

Ressalto que dentro do próprio setor da Cultura, e em especial do Audiovisual, há a reprodução da nossa sociedade: machismo, misoginia, racismo, LGBTfobia, elitismo. O que eu passei esse ano foi agravado por isso, pela misoginia e pelo machismo que alguns que se dizem profissionais do Audiovisual perpetuaram. Desde que comecei a atuar no Audiovisual em Joinville o machismo e a misoginia é flagrante, além da presença de homens que têm histórico de violência contra a mulher no nosso meio, em Joinville e em Santa Catarina, no Setor Audiovisual. 

Para quem disse que eu fui corajosa: vocês não sabem da missa a metade! Tive, tenho e continuarei tendo coragem para lutar contra essa gente, dentro e fora do setor. Vou continuar realizando filmes que, sem finais felizes, coloquem o dedo na ferida de uma sociedade doente e criminosa. Pra quem achou que eu estava derrotada, fica o recado. É preciso coragem para produzir cinema, cinema com o coração, com vontade, com tesão e com voz. Para os covardes eu deixo os finais felizes, o que é “esteticamente bonito”, a tentativa de roubar o lugar de fala das minorias (o que teve de homem fazendo filme sobre violência contra a mulher nos últimos anos na região!), a purpurina e as cenas coreografadas. Ah, para os covardes resta o fascismo também, que eles admiram (secretamente ou não) e que reproduzem nos seus discursos.

Além de realizar filmes, permaneço atuante publicamente. Foi uma decisão muito difícil de tomar, mas que conta com o apoio de muitas pessoas. Eu não estou sozinha. Como dizem, é nas horas difíceis que a gente reconhece quem é quem. Eu sei muito bem quem esteve ao meu lado na trincheira e quem jogou bombas, inclusive enquanto dizia que estava ao meu lado. Sei cada pessoa que se omitiu. Sei bem quem só se aproxima de mim quando acha que vai ter lucro. Sei bem quem tentou me usar e ao meu conhecimento. A cada um, o que lhe cabe. 2023 não acabará em 31 de dezembro de 2023, porque os nossos atos têm consequências.

Por tudo isso e mais um pouco, não me admira que a Prefeitura de Joinville não tenha sequer lançado os editais do SIMDEC 2023. Falta menos de 15 dias para encerrarmos o ano! Vejam se tem alguém cobrando, se o setor cultura está unido fazendo pressão nas redes sociais, se o Conselho Municipal de Políticas Culturais se manifestou! NADA. Nem na última década vimos um descaso e falta total de compromisso com o setor cultural como em 2023, quando os editais de 2022 não foram pagos e os de 2023 sequer foram lançados.

Semanas atrás fui convidada da rádio CBN Diário de Joinville para falar sobre o atraso no pagamento do Edital SIMDEC 2022. Relatei que 4 milhões para o Natal a Secretaria de Cultura e Turismo tinha, mas para pagar o resultado homologado em setembro, nada. Aí uma repórter do jornal O Município me procurou e começou um levantamento sobre os projetos. Na reunião do Conselho o secretário me respondeu dizendo que seriam pagos até a outra semana. A repórter do O Município não respondeu mais se a reportagem seria publicada. Um outro repórter perguntou à prefeitura e me repassou que, dos 57 projetos aprovados, 46 haviam sido pagos (dados de 11/12/2023) e seis estavam em tramitação. Os projetos que têm a minha participação sequer receberam o Termo de Compromisso Cultural para assinar. Agora, deixo para vocês julgarem se ser corajosa e expor toda essa podridão tem alguma vantagem. Assim entendemos bem todos os meus colegas do setor cultural que se mantém em silêncio: pelo menos estão com o dinheiro em conta para realizar os projetos, não?

A luta é coletiva. Se não fosse eu dar a cara a tapa e correr atrás da publicização do atraso no pagamento do edital, ninguém teria recebido. Podem me agradecer, colegas. Agora, sou eu que, exposta, pago por isso. Cada pessoa que eu contratar para os projetos, lembre bem da luta que é realizá-los. Do quanto a gente precisa dar a cara, cobrar, lutar, contratar advogado, denunciar na imprensa (quando o poder não consegue calá-la). Vejo tanta gente que é só ativista de rede social, mas nessas horas nem esses lutam! Poxa, às vezes é só compartilhar um post, né? Se fosse sobre algo acontecendo lá do outro lado do mundo, vocês correriam compartilhar, eu sei.

É preciso muita coragem e, por vezes, é sozinha mesmo que a gente precisa lutar. Quando a gente ganha a batalha, as pessoas se aproximam. Agora, se vocês acham que essa luta não é de vocês… quando a água bater na bunda, podem me procurar.

Não me falta coragem para ter minha voz ouvida. E faço isso muito para que outros se sintam incentivados a ter coragem. Não sou a diva da discórdia, não sou puxa saco, não sou diplomática nem covarde. Há algo no senso de Justiça que me atrai profundamente. Se mais perseguição e retaliação vier, é a Justiça que vai se encarregar.

Por um 2024 de muita coragem para produzir cinema, mais e melhor.

Passagem de Volta – o conto

Sentou-se e admitiu em silêncio: estava cansado. Mais uma semana de trabalho naquele ritmo e ele desejaria três meses de férias. Alguma praia tranquila, água transparente, os doloridos pés sem sapatos enterrando os dedos na areia fina. Aí lembrou, a esposa detestava praia. Férias era sinônimo de viajar para a casa dos pais dela no interior. Há sete anos ele não tirava férias, dos dez de casado.

Pediu um café forte e simples e espantou-se com o preço. Além da passagem cara, por ter sido em cima da hora, agora esse assalto no café. Três noites sem dormir para resolver aquele negócio e ainda essa viagem e o irritante atraso no voo. Em algumas horas teria que estar de volta.

Chamada após chamada e nada do voo dele ser anunciado, sequer uma explicação estapafúrdia sobre o atraso. Seu pessimismo sussurrava que o voo seria cancelado. Foi até o balcão apinhado de pessoas indignadas para ser só mais um a reclamar – como se os funcionários já não soubessem que todos ali estavam injuriados, tinham conexão, reuniões, tudo muito importante. Ouviu uma moça da companhia aérea explicar que havia um avião com problemas na pista, o que atrasava todos os outros. Rodou mais um pouco pelo aeroporto, a fome, que seria saciada com o lanche do avião, se fazia sentir. E finalmente chamaram para o embarque.

Foi um rebuliço. Enquanto todos lamentavam o atraso e criticavam a empresa, ele sentou, retirou uns papéis da pasta e começou a fazer anotações. Tão logo deu uma olhada para a cidade vista lá de cima, cochilou. Era uma pena que as viagens de avião encurtassem o trajeto mas não prolongassem o tempo, pois ele dormiu muito bem.

Saiu correndo em direção ao metrô. Tantas vezes estivera ali que agia maquinalmente, era só mais um dia de trabalho com uma infinidade de problemas para resolver. Seguiu a procissão, cartórios, advogados, contadores, registros, documentos e mais documentos. Cinco horas depois deslizou na cadeira de uma lanchonete e pediu o sanduíche de pernil de sempre. Devorou-o enquanto revia os documentos. Só faltava um último registro num cartório imobiliário mais para o centro, perto do hotel. O hotel. Ah, suspirou! Sonhava tirar aquele sapato. Tomou um copo de suco de laranja em um único longo gole, passou o guardanapo nos lábios, pagou e saiu.

O hotel não tinha nada de especial, só era bem localizado. Havia demorado mais do que ele imaginara, pois os trens do metrô estavam em pane. Pegou a chave sem sorrir para a recepcionista, entrou no elevador, escorou-se no espelho da parede interna e subiu.

Abriu a porta do quarto e tirou os sapatos antes mesmo de fechar a porta. Jogou-os para o lado, afrouxou a gravata, tirou toda a roupa e tomou um banho quente. De pijama, sentou na cama com o computador no colo. Precisava ler uns e-mails do escritório para adiantar o trabalho de amanhã e fazer o check-in do voo de volta.

Começou a suar. Não era possível. Estava igual aos seus companheiros de voo, excomungando a companhia aérea e maldizendo “com essa nunca mais”. Tentou, pela milésima vez, fazer o check-in. E nada. Não tinha guardado o comprovante do embarque da ida. E o sistema acusava que ele não tinha embarcado. Revirou sua caixa de entrada do e-mail e lá estava: seu bilhete fora cancelado porque não houve embarque no voo determinado, portanto a volta também não existia. Como voltar de um lugar para onde ele não tinha ido?

Levantou, deu uma dúzia de voltas pelo quarto coçando a cabeça. Tentava encarar a situação com alguma lógica. A companhia não havia registrado seu embarque, o bilhete não existia mais para prová-lo, somente, talvez, as câmeras do aeroporto o vissem entrando no finger. Mas as câmeras do aeroporto do destino talvez também o tivessem registrado. No mais, era uma pessoa desaparecida. E isso cresceu mais nos seus pensamentos do que o fato de que não tinha passagem para voltar para casa – teria que travar uma briga estúpida com o sistema e os funcionários da companhia aérea, pagar taxas e mais taxas ou simplesmente pagar (mais) um absurdo por uma passagem de volta.

Ele sumira, aos olhos do sistema. Se ele não desse as caras amanhã em casa nem no escritório, ele estaria desaparecido. E ao investigar, a polícia se depararia com o registro do sistema: ele não embarcou, senhor. Se ele não havia embarcado, não havia chegado ao destino. Ou seja, teria desaparecido no aeroporto de origem – na cidade onde morava. E as investigações nem chegariam até a cidade onde ele estava. Aliás, nem a ficha do hotel ele tinha preenchido ainda, pois estava muito cansado e pediu para fazer isso depois – e os funcionários do hotel eram muito relapsos e sempre mudavam. Não seria fácil identificá-lo. Ele poderia sumir sem nem pagar, jamais saberiam que ele estivera lá. Isso se a investigação chegasse até o hotel.

Pensou na esposa. Ficaria em choque. Pensaria em assalto, que ele teria reagido e fora assassinado – ela sempre se preocupara com isso. Dias depois ela já teria certeza que ele havia se envolvido em algum esquema grande de corrupção – ela desconfiava dele, sempre, porque não via que o dinheiro vinha dos intermináveis dias de trabalho e não de negócios escusos. Ela o acusaria para a mãe dele. E talvez as duas acabassem concordando que fora, afinal, assassinado por ter se envolvido com a mulher de alguém.

Uma euforia tomou conta dele. Ele não existia mais. O fardo da existência havia sido retirado das suas costas. Sentia vontade de beijar a companhia aérea, abraçar seus aviões, seus pilotos, suas funcionárias simpáticas e prestativas. Ele não era mais ele mesmo – poderia, então, ser quem ele quisesse. Poderia inventar-se a si mesmo. Mas queria aproveitar este momento de não ser, absolutamente, ninguém. Não. Melhor. Ele não era “ninguém”. Ele simplesmente não existia. Mas, para isso, precisava cuidar dos vestígios.

Decidiu destruir o computador e sair do hotel na calada da noite. Arrumou a mochila, colocou a roupa. Estava pronto. Pegou o elevador e ninguém diria que aquele homem alto, peito inflado, sorriso escancarado era o mesmo que aquela coisa murcha que havia subido, horas antes, apoiando-se em tudo para não cair no chão. Desceu do elevador e aguardou atrás do pilar até ter certeza que o porteiro noturno dormia com seu fone de ouvido. Saiu em silêncio e ganhou a rua como se tivesse matado um leão. Era um ato heroico.

Já tinha tudo planejado. Possuía uma conta bancária que ninguém conhecia. Era onde ele guardava o dinheiro do sonho de construir um barco quando se aposentasse. Aquele homem que entrara no hotel estava anos-luz de se aposentar, mas com o dinheiro da conta já era possível construir uns dez barcos. Agora, aquele homem que caminhava lépido não tinha trabalho do qual se aposentar. Levaria alguns dias para retirar todo o dinheiro da conta, mas o faria. Ele nunca fora adepto de cartões, sempre usara dinheiro vivo – mais um dado que impediria que ele fosse rastreado e que faria sua esposa insistir na tese do assalto.

Tinha tudo pela frente: a vida, a madrugada, a escolher um destino. Pensou na praia. Em menos de duas horas chegaria até a mais próxima. Pegou um táxi e falou bem alto, com todas as letras “Vamos à praia, meu senhor”. O motorista temia mais um louco na madrugada. Combinaram o pagamento antes e seguiram.

Ao chegar, tirou os sapatos e as meias e deixou-os junto à mochila na calçada vazia, arrebentou a carcaça do computador e jogou-o numa lixeira. Correu dando saltos desajeitados até enfiar com gosto os pés na água gelada. Imaginou-se dono de um bar em qualquer praia quente do país. Viveria entregue à delícia de ouvir, dia e noite, as ondas quebrando na praia. A decisão estava tomada. Não almejava nada mais. Não queria ser ninguém. Inventaria algum nome fora de suspeita, nunca mais usaria sapatos, nem gravatas, nem no casamento da filha.

Começou a chorar. A filha, ela adoraria estar ali aos seus pés brincando na areia, enchendo o balde com a água do mar. Teria que saber viver sem ela, como, aliás, vivia todos os dias, assoberbado de trabalho – daria no mesmo. Mas não daria o infalível beijo de boa noite. Não contaria histórias mirabolantes sobre animais fantásticos nas noites de sábado insinuando-se para que ela fizesse o convite: pai, vamos dormir no sofá? Era pouco. Muito pouco. E já sentia que este pouco lhe faria muita falta.

Viu o sol nascer. E guardaria para todo o sempre aquele momento. Dele lembraria quando estivesse internado, aos sessenta e quatro anos, sem aposentar-se, trabalhando dezoito horas por dia, com a poupança para o barco com dinheiro para construir uma frota, depois de um infarto fulminante que levaria sua vida após dez agonizantes horas entubado e sobrevivendo por aparelhos.

Caminhou descalço pela orla até encontrar um táxi. Era o mesmo que o trouxera. Seguiram em silêncio até o aeroporto da outra cidade. Ele pagou em dinheiro, o que tinha retirado pra viagem, pois nem havia tocado na poupança do barco. Entrou no aeroporto com seu ar-condicionado gelado. Arcado, parecia ter dez centímetros a menos. Olheiras. A mochila numa mão, os sapatos na outra. Aproximou-se do balcão da companhia aérea, colocou os sapatos no tampo, tirou a carteira. “Oi, eu preciso embarcar. Mas eu não existo pra vocês. Vê aí o que a senhorita pode fazer” e a atendente, tão acostumada às bizarrices dos passageiros aéreos, deu um passo temeroso para trás. “S i i m, senhor”.

Ele não existia, é claro, porque ele não embarcara, o senhor pode ver aqui, temos a lista de passageiros, se o senhor conseguisse provar a sua existência, quer dizer, o seu embarque, tudo estaria resolvido. Tinham um voo para dali uma hora, lotado, é claro, o senhor entende. Não conseguiriam resolver o não-embarque, então, veja, o senhor pode solicitar o estorno posterior desta passagem. E agora só dali seis horas, um voo não direto, veja bem, com escala de duas horas numa outra cidade mais ao norte. Resolveria o seu problema, não é mesmo? O valor era alto, é claro, mas o senhor entende, restam poucos lugares. Mas teria a certeza de embarcar hoje, com menos contratempos, não é mesmo?

Ele ouvia. Só movimentava a cabeça. Tirou o dinheiro do bolso, jogou no balcão. Seis horas naquele aeroporto, mais uma hora e meia de trajeto, mais duas horas de conexão, mais uma hora de trajeto. E aí estaria de volta. Com um último suspiro de quem não existia, tomou a decisão que enfrentaria o que fosse, não importava, desde que sem os sapatos e apreciando a sensação da areia ainda entre os dedos. Ninguém o obrigaria a viajar com sapatos.

Virou as costas, caminhou a esmo. Sentou-se na cadeira e pediu um café. O dobro do preço do café da ida. Pagou e tomou-o bem devagar.

(Conto original que foi adaptado para roteiro e foi produzido, agora disponível online em: https://youtu.be/HDow-fMA5xA)

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